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sábado, 20 de novembro de 2021

 

Maria Firmina dos Reis, Úrsula, e o resgate das narrativas das minorias

Mariana Werkhaizer Soares de Campos Rosa

Bacharel em Letras – Português/Inglês pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. No momento está concluindo a Licenciatura em Letras – Português/Inglês pela mesma universidade.

 

 Nesta semana, comemoram-se duas importantes datas: a Proclamação da República e o Dia da Consciência Negra. Essas duas datas estão entrelaçadas, pois a construção de uma identidade nacional, processo que já havia se iniciado com a Independência, começa a se consolidar na República e, para a construção dessa identidade, certas visões e versões da história (tanto com H quanto com h) foram adotadas, enquanto outras foram relegadas ao esquecimento.

  Obviamente, a construção da identidade nacional brasileira se deu com base na visão e na versão dos brancos, mais especificamente, dos homens brancos, adultos, cristãos e heterossexuais da elite, portugueses ou descendentes deles.

  A literatura, assim como outros aspectos da cultura, ocupa um lugar importante na construção das identidades nacionais. Por isso mesmo, nada mais natural que homens brancos, cristãos, heterossexuais, da elite, usem seu poder sobre todas as esferas da sociedade para eleger livros que reflitam as suas ideias e valores, que lhes dizem algo, para compor o cânone da literatura nacional, ou seja, aquele conjunto de obras que são consideradas fundamentais para a compreensão da história, sociedade e cultura brasileiras.

  Portanto, não é de se espantar que, ao longo da história, obras escritas por mulheres, afro-brasileiros, homossexuais, entre outras minorias, foram consideradas de menor importância para a literatura brasileira. É o caso, por exemplo do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (1822-1917), publicado em 1859 sob o pseudônimo “Uma Maranhense”.

  Úrsula representa um marco na literatura brasileira sob vários aspectos: é o primeiro romance publicado por uma mulher negra no Brasil, além de ser o primeiro romance abolicionista (título tradicionalmente atribuído ao romance A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, publicado quatorze anos depois) e o primeiro a trazer personagens negros tomando a palavra, narrando suas vidas e vivências por si próprios.

   Nos últimos anos, após o centenário da morte de Maria Firmina dos Reis em 2017, tem havido um esforço para recuperar o lugar de grande importância que pertencem, por direito, a ela e a Úrsula na história da literatura brasileira. Nascida no Maranhão, Maria Firmina foi professora e se destacou na cena literária maranhense da época. Mesmo assim, seu romance foi injustamente esquecido por décadas.

    A trama de Úrsula se parece muito com a de outras obras do período do Romantismo: grandes amores trágicos, perseguições, reviravoltas, cenas que se desenrolam em conventos e cemitérios, tudo muito ao gosto da época.

   Embora esses elementos prendam a atenção do leitor com grande facilidade, estudiosos de literatura afirmam que o verdadeiro valor do romance está em sua quarta parte, na qual os personagens negros de maior destaque, Túlio e Mãe Susana, tomam conta da narrativa.

   Como o grande objetivo deste texto é chamar a atenção para Úrsula e estimular a sua leitura, não serão feitas revelações sobre a trama; contudo, é importante destacar como os relatos dos personagens, sobretudo o de Mãe Susana, idosa e saudosa da sua vida na África e da liberdade que tinha lá, são contundentes e comoventes, denunciando o horror vivido pelos escravizados, tanto durante o transporte nos medonhos navios negreiros quanto no território brasileiro.

    Úrsula é um romance pioneiro e corajoso. Lamentavelmente, a força de sua mensagem abolicionista, discutida por meio de personagens negros, com bastante realismo (ao menos no que diz respeito a essa parte específica do livro), foi ofuscada quando, quatorze anos mais tarde, em 1873, Bernardo Guimarães, um escritor branco, publicou A Escrava Isaura.

  Trazendo como protagonista uma jovem branca escravizada (o que por si só já é algo totalmente desprendido da realidade), o romance de Guimarães busca a empatia do leitor ao mostrar o terror e a degradação da escravidão vivenciados por uma figura extremamente idealizada, pura, devota, de beleza angelical, uma mocinha típica dos romances da época, da qual outro exemplo é a própria Úrsula que dá título à obra de Maria Firmina dos Reis.

  No entanto, não se pode negar que A Escrava Isaura surtiu algum efeito, fazendo sucesso entre os abolicionistas e até mesmo dando origem, um século depois de sua publicação, a uma telenovela de sucesso internacional (Escrava Isaura, adaptação do romance para a TV, escrita por Gilberto Braga e exibida pela TV Globo entre 1976 e 1977).

  A fragilidade dessa história, contudo, reside justamente naquele ponto que fez com que fosse bem-sucedida: o apagamento da visão e da versão dos africanos e afro-brasileiros escravizados, ao trazer para o primeiro plano uma mulher branca, numa situação bastante inverossímil, pouco condizente com a realidade que imperava durante os quase 400 anos em que a escravidão enquanto política de estado persistiu no Brasil.  

   Se a personagem Isaura fosse negra ou mulata, a obra poderia ser considerada mais verossímil, mas é discutível se geraria a mesma comoção que gerou na época de sua publicação. 

   Por isso, é de fundamental importância que se faça o movimento contrário ao que a história fez. É preciso resgatar obras como Úrsula, que abordam o tema da escravidão do ponto de vista daqueles que a vivenciavam na vida real, escritas por pessoas a quem historicamente se nega voz, como as mulheres e a população negra.

  Como diz a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, não podemos correr o perigo de aceitar uma história única. A realidade é heterogênea, composta de elementos diversos, e a construção de uma identidade nacional também deve ser, conjugando diferentes narrativas.

Referências bibliográficas

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Trad.: Julia Romeu. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

ANDERSON, Benedict. “As origens da consciência nacional”. In: Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad.: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 71-83.

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Porto Alegre: Zouk, 2018.

SCHMIDT, Rita Terezinha. “Uma voz das margens: do silêncio ao reconhecimento”. In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Porto Alegre: Zouk, 2018, pp. 13-24.

ZIN, Rafael Balseiro. “Maria Firmina dos Reis, intérprete do Brasil”. In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Porto Alegre: Zouk, 2018, pp. 7-12.

Um comentário:

  1. Parabéns Mariana!! Seja bem-vinda ao nosso espaço!! Artigo maravilhoso e que nos convida para uma reflexão bem realista. Realmente, não podemos aceitar uma única face da história, é preciso navegar por mares ainda não navegados para reconstruirmos com sabedoria a nossa História!! Fica a valiosa dica da leitura da obra Úrsula e a possibilidade da ampliação desse culto diálogo literário!!

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