Maria
Firmina dos Reis, Úrsula, e o resgate das narrativas das minorias
Mariana
Werkhaizer Soares de Campos Rosa
Bacharel
em Letras – Português/Inglês pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo. No momento está concluindo a Licenciatura
em Letras – Português/Inglês pela mesma universidade.
Nesta semana, comemoram-se duas importantes
datas: a Proclamação da República e o Dia da Consciência Negra. Essas duas
datas estão entrelaçadas, pois a construção de uma identidade nacional,
processo que já havia se iniciado com a Independência, começa a se consolidar
na República e, para a construção dessa identidade, certas visões e versões da história
(tanto com H quanto com h) foram adotadas, enquanto outras foram relegadas ao
esquecimento.
Obviamente,
a construção da identidade nacional brasileira se deu com base na visão e na
versão dos brancos, mais especificamente, dos homens brancos, adultos, cristãos
e heterossexuais da elite, portugueses ou descendentes deles.
A literatura, assim como outros aspectos da
cultura, ocupa um lugar importante na construção das identidades nacionais. Por
isso mesmo, nada mais natural que homens brancos, cristãos, heterossexuais, da
elite, usem seu poder sobre todas as esferas da sociedade para eleger livros
que reflitam as suas ideias e valores, que lhes dizem algo, para compor o
cânone da literatura nacional, ou seja, aquele conjunto de obras que são consideradas
fundamentais para a compreensão da história, sociedade e cultura brasileiras.
Portanto, não é de se espantar que, ao longo
da história, obras escritas por mulheres, afro-brasileiros, homossexuais, entre
outras minorias, foram consideradas de menor importância para a literatura
brasileira. É o caso, por exemplo do romance Úrsula, de Maria Firmina
dos Reis (1822-1917), publicado em 1859 sob o pseudônimo “Uma Maranhense”.
Úrsula representa um marco na
literatura brasileira sob vários aspectos: é o primeiro romance publicado por
uma mulher negra no Brasil, além de ser o primeiro romance abolicionista
(título tradicionalmente atribuído ao romance A Escrava Isaura, de
Bernardo Guimarães, publicado quatorze anos depois) e o primeiro a trazer
personagens negros tomando a palavra, narrando suas vidas e vivências por si
próprios.
Nos últimos anos, após o centenário da morte
de Maria Firmina dos Reis em 2017, tem havido um esforço para recuperar o lugar
de grande importância que pertencem, por direito, a ela e a Úrsula na
história da literatura brasileira. Nascida no Maranhão, Maria Firmina foi
professora e se destacou na cena literária maranhense da época. Mesmo assim,
seu romance foi injustamente esquecido por décadas.
A trama de Úrsula se parece muito
com a de outras obras do período do Romantismo: grandes amores trágicos,
perseguições, reviravoltas, cenas que se desenrolam em conventos e cemitérios,
tudo muito ao gosto da época.
Embora esses elementos prendam a atenção do
leitor com grande facilidade, estudiosos de literatura afirmam que o verdadeiro
valor do romance está em sua quarta parte, na qual os personagens negros de
maior destaque, Túlio e Mãe Susana, tomam conta da narrativa.
Como o grande objetivo deste texto é chamar
a atenção para Úrsula e estimular a sua leitura, não serão feitas
revelações sobre a trama; contudo, é importante destacar como os relatos dos
personagens, sobretudo o de Mãe Susana, idosa e saudosa da sua vida na África e
da liberdade que tinha lá, são contundentes e comoventes, denunciando o horror
vivido pelos escravizados, tanto durante o transporte nos medonhos navios
negreiros quanto no território brasileiro.
Úrsula é um romance pioneiro e
corajoso. Lamentavelmente, a força de sua mensagem abolicionista, discutida por
meio de personagens negros, com bastante realismo (ao menos no que diz respeito
a essa parte específica do livro), foi ofuscada quando, quatorze anos mais
tarde, em 1873, Bernardo Guimarães, um escritor branco, publicou A Escrava
Isaura.
Trazendo como protagonista uma jovem branca
escravizada (o que por si só já é algo totalmente desprendido da realidade), o
romance de Guimarães busca a empatia do leitor ao mostrar o terror e a
degradação da escravidão vivenciados por uma figura extremamente idealizada,
pura, devota, de beleza angelical, uma mocinha típica dos romances da época, da
qual outro exemplo é a própria Úrsula que dá título à obra de Maria Firmina dos
Reis.
No entanto, não se pode negar que A
Escrava Isaura surtiu algum efeito, fazendo sucesso entre os abolicionistas
e até mesmo dando origem, um século depois de sua publicação, a uma telenovela
de sucesso internacional (Escrava Isaura, adaptação do romance para a TV, escrita
por Gilberto Braga e exibida pela TV Globo entre 1976 e 1977).
A fragilidade dessa história, contudo, reside
justamente naquele ponto que fez com que fosse bem-sucedida: o apagamento da
visão e da versão dos africanos e afro-brasileiros escravizados, ao trazer para
o primeiro plano uma mulher branca, numa situação bastante inverossímil, pouco
condizente com a realidade que imperava durante os quase 400 anos em que a
escravidão enquanto política de estado persistiu no Brasil.
Se a personagem Isaura fosse negra ou
mulata, a obra poderia ser considerada mais verossímil, mas é discutível se geraria
a mesma comoção que gerou na época de sua publicação.
Por isso, é de fundamental importância que
se faça o movimento contrário ao que a história fez. É preciso resgatar obras
como Úrsula, que abordam o tema da escravidão do ponto de vista daqueles
que a vivenciavam na vida real, escritas por pessoas a quem historicamente se
nega voz, como as mulheres e a população negra.
Como diz a escritora nigeriana Chimamanda
Ngozi Adichie, não podemos correr o perigo de aceitar uma história única. A
realidade é heterogênea, composta de elementos diversos, e a construção de uma
identidade nacional também deve ser, conjugando diferentes narrativas.
Referências
bibliográficas
ADICHIE, Chimamanda
Ngozi. O perigo de uma história única. Trad.: Julia Romeu. 1ª ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2019.
ANDERSON, Benedict. “As
origens da consciência nacional”. In: Comunidades imaginadas: reflexões
sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad.: Denise Bottman. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008, pp. 71-83.
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula.
Porto Alegre: Zouk, 2018.
SCHMIDT, Rita Terezinha. “Uma
voz das margens: do silêncio ao reconhecimento”. In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula.
Porto Alegre: Zouk, 2018, pp. 13-24.
ZIN, Rafael Balseiro.
“Maria Firmina dos Reis, intérprete do Brasil”. In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula.
Porto Alegre: Zouk, 2018, pp. 7-12.
Parabéns Mariana!! Seja bem-vinda ao nosso espaço!! Artigo maravilhoso e que nos convida para uma reflexão bem realista. Realmente, não podemos aceitar uma única face da história, é preciso navegar por mares ainda não navegados para reconstruirmos com sabedoria a nossa História!! Fica a valiosa dica da leitura da obra Úrsula e a possibilidade da ampliação desse culto diálogo literário!!
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